O QUE É SER NORMAL?
O
conceito de “normalidade” nasceu do “homem médio” de Adolphe Quetelet
(1796-1874), e era um valor matemático: a média de todos os homens (em altura,
peso e inteligência). Quanto mais próximo se estivesse do “homem médio” mais
perto se estaria da harmonia. No fundo, era um homem sem excessos nem
carências, que preenchia os limites da perfeição que a racionalidade iluminista
procurava. O inglês Francis Galton (1822-1911) tornou o “homem médio” num
indicador de mediocridade, marcando-se o início da eugenia e da ambição de
aperfeiçoar a raça humana, física e mentalmente, culminando nos desastres
laboratoriais nos campos de concentração nazis, durante a Segunda Guerra
Mundial.
Segundo o
dicionário, “normalidade” é o nome feminino para a “qualidade ou estado de
normal ou do que está de acordo com as regras; qualidade ou estado de frequente
ou usual; qualidade do que não sofre de perturbações a nível físico e/ou
psicológico”.[1] Como
vemos, da normalidade surgem-nos, na primeira linha, as “regras”. Podemos automaticamente
questionar o advento dessas regras, a sua validade e natureza. Serão elas
sociais, sobrevindas de alguma normatividade instituída (direito, religião,
costume, p.e.), ou poderão estar circunscritas ao campo da psicologia ou da psiquiatria
humanas? Ou estarão todas estas entidades envolvidas pela mão do preconceito e
do condicionamento da envolvência sócio-cultural do Homem hodierno?
É certo que a
normalidade é um conceito volátil ao longo do tempo. Já foi “normal”, ou pelo
menos válido socialmente, o assassinato de bruxas na fogueira, a aceitação do
papel menor da mulher na vida política, a perseguição dos negros e a sua
segregação... É normal endeusar vacas na Índia ou não comer porco nos países
islâmicos. Ainda é questionável a normalidade da homossexualidade, a sua
aceitação e a liberalização do casamento e da adopção. Legalização da eutanásia
ou das drogas leves mexem precisamente com a capacidade de dada sociedade ser
capaz ou não de considerar normais aquelas realidades.
É criticamente
interessante pensar nas motivações concretas destas mudanças na forma de deter
a realidade. Serão elas da responsabilidade das normatividades? O casamento homossexual,
por exemplo, terá de reconhecer primeiro a sua legalização pelo direito para
depois ser assumido como tendencialmente normal pela sociedade? Dado importante
é dado pela Psicologia: o efeito de exposição repetida, ou seja, o contacto
repetido com um “estímulo” estranho torna-o mais familiar e facilmente
assimilável. Este efeito é válido para coisas simples, como a estranheza da
comida exótica mexicana num primeiro contacto, e parece sê-lo para coisas complexas,
como os exemplos dados.
A preocupação da
sociedade actual parece desviar o sentido da normalidade pela glorificação do
que é estranho e diferente. O apogeu do alternativo, o fenómeno Lady Gaga na
música, a procura do revivalismo e o estado actual da arte (em tudo inspirada
nos conceitos dadaísta da “não-arte”), podem ser alguns dos exemplos disso
mesmo. As próprias neurociências e a psiquiatria parecem enveredar pelo mesmo
caminho (como vimos na definição de normalidade, a sanidade psicológica e
física são requisitos de normalidade). Os padrões de beleza encontram-se, por
exemplo, em redefinição. Modelos com dentes separados, caras desproporcionais
ou fruto de miscelâneas raciais granjeiam grande apelo do marketing na indústria da moda.
A psiquiatria e o
fenómeno da evolução da investigação das doenças mentais traz à tona
precisamente a discussão sobre a normalidade mental. A revista Focus[2]
revisita esta questão e expõe dados interessantes: “Na primeira edição [do
manual de diagnósticos da Associação Americana de Psiquiatria], da lista
constavam 106 doenças psiquiátricas. (...) Em 2000, já haviam 297.” Desta quase
triplicação das doenças mentais será honesto questionar: será que a psiquiatria
actual está a descobrir doenças ou a inventá-las? O contra-argumento será,
logicamente, relacionado com a evolução da medicina e das suas técnicas e meios
de diagnóstico. É certo que a depressão ou a hiperactividade são doenças
mentais relativamente recentes e que se encontram completamente banalizadas no
nosso quotidiano. Será anormal possuir “doença mental” ou ser “saudável”?
Kramer defende que
nos encontramos a enveredar pela era em que a anormalidade será universal. Para
Freud, o “ego normal” era uma “ficção ideal”. Já Aristóteles, considerava que a
normalidade da pessoa se media pela diferença entre a proporcionalidade das
emoções e as situações em caso concreto. Szasz diz-nos que a doença mental não
é mais do que uma forma de negar que possuímos emergências, discursos
opinativos e valores diferentes uns dos outros. O filósofo francês Michel Foucault
(1926-1984), assumia a popularização da psiquiatria como uma forma de impor
socialmente a moral burguesa. Radicalismos à parte, estas opiniões técnicas
demonstram precisamente o quão volátil pode ser a realidade e a sua análise[3],
mesmo que científica.
Podemos objectivar
que a doença mental surge precisamente da inadequação do ser humano doente em
relação ao meio envolvente e às suas noções castradoras de perfeição, enquanto
como conceito. Esta parece a tónica da normalidade e vai para além da doença: existe
uma clivagem de uma parte de nós – o inato, ou a predisposição à doença – em
relação ao que os outros e seus conceitos esperam de nós. Mesmo que o biológico
seja o minoritário e o sócio-cultural o predominante na personalidade humana,
ou vice-versa, tratamos da diferença, portanto.
A relevância do
fenómeno da normalidade afecta-nos o quotidiano: as censuras, julgamentos e
condicionamentos que criamos, todos os dias, a quem é anormal. Como fuga à regra, ao instituído e às densas paredes que
nos envolvem em jeito de aura social, o paradigma da anormalidade envolve a
nossa mente em catálogos. Não será a adequação à normalidade a forma racional
do ser humano se defender das suas próprias fragilidades biológicas? Tendemos
todos a ser anormais e por isso contrariamos (e somos contrariados) diariamente
pela formatação dos outros em nós?
Recolocar o lugar
do normal nas nossas mentes parece
dar razão às vozes da psiquiatria. Se somos todos diferentes biologicamente,
passando por processos de “normalização” social (imputados por crenças,
valores, princípios ou regras) – a psicologia chama-lhe de “processos de
socialização” -, não estará a sociedade moderna (pautada pelo apogeu do
individualismo) a permitir o advento dos traços mais recônditos do ser humano?
Até que ponto é legítimo tentar re-controlar estas pulsões? Parece impossível
devolver ao Homem um qualquer estado natural, como Hobbes ou Locke tentaram
perceber. É por certo interessante verificar que a própria natureza humana, em
sociedade, poderá deter os meios para perverter automaticamente as teias que
ela mesma foi criando em redor dos indivíduos.
Luís
Gonçalves Ferreira
Aluno n.º
340 111 111
UNIVERSIDADE
CATÓLICA PORTUGUESA
(Centro
Regional do Porto) – Licenciatura em Direito
Unidade
Curricular: Pensamento Crítico
Dezembro de 2011
[1]
“Normalidade”, Infopedia: Enciclopédia e
Dicionários Porto Editora, http://www.infopedia.pt/pesquisa-global/normalidade,
consult. 14/12/2011.
[3] O stress pós-traumático foi analisado, primariamente,
no contexto da guerra do Vietname, com proposições e condicionamentos
políticos. Em primeiras análises, aqueles médicos determinaram que a guerra
trouxera traumas aos soldados não pela guerra em si, mas por terem lutado sob mentira
governativa. A causa não era o cenário em si, mas as questões de valores que os
levaram até lá, no caso concreto. Contudo, o stress pós-traumático foi
diagnosticado em soldados advindos de outros cenários de guerra e não daquele.
Outro exemplo é o caso da depressão. Segundo os
professores americanos Andy Thomson e Paul Andrews, pegando na noção de Darwin
sobre a adaptação e evolução, a depressão seria um traço da progressão humana.
A pessoa isola-se do Mundo, reflete intensamente sobre os seus problemas e
eminências e resolve enigmas. Eles consubstanciam assim a depressão como normal
e produtiva. Parecem ser ignorados os casos serveros da doença. Contudo, esta
teoria justificaria o brilhantismo de certas vítimas de depressão: Winston
Churchill, Graciliano Ramos ou Salvador Dalí.
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